domingo, 25 de fevereiro de 2018

Me Deixe Sair! PARTE 1


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Oi! Essa é a primeira parte. Assim que eu for escrevendo, eu posto aqui. Mas observe que as partes vão ficar fora da ordem cronológica. ______________________________________________________________________________

O dia entrava morno pelos vãos da cortina. Nos feixes de luz, as partículas de poeira dançavam diante do seu olhar ainda distante pelo sono. A vida ia se fazendo calor pelos seus membros adormecidos, e corria como uma matilha de lobos selvagens dos pés à cabeça, trazendo os primeiros pensamentos. 

Tocou os pés inchados no tapete felpudo, abriu os braços e soltou um som abafado e rouco. Vestiu as chinelas e caminhou com os ombros baixos, a calça deixando as nádegas  à mostra. Mais um dia no mundo, mais um maldito dia... L. mirou a face cheia no espelho, atentou especialmente para as bolsas sob os olhos mortiços. Era um homem, seus trinta e tantos anos, arrastando a barriga por inércia, um pouco por vontade, um tanto por teimosia. Mas a vida..que vida era aquela de arrastar-se entre as pessoas, comer, muito, e dormir mais ainda? Não se perguntava mais, mas sabia no fundo que na sua vida, nele mesmo, era como se tudo estivesse fora do lugar. 

Colocou a escova preguiçosamente dentro da boca. A escova ia para a direita e para a esquerda, para cima e para baixo. Sempre na mesma ordem, sempre com a mesma indiferença de quem apenas espera a hora de deixar tudo. Tomou suas três pílulas. O antidepressivo estava no fim, tinha que marcar um consulta, pegar outra receita. Era só isso, apenas suportar quimicamente aquele arremedo de existência. 

Levantou a cabeça e ficou a observar o olhar azulado. Mas espere! Seus olhos eram castanhos. Mas certamente um olhar azul o observava a partir do espelho. Jogou água na cara na tentativa de acordar o que quer que estivesse dormindo. Pensou que os remédios estavam mexendo com sua cabeça. Mas não era para isso mesmo que serviam esses remédios? Mais um pouco de água e quando ele olhar para o espelho, tudo vai estar como antes. Não que fosse uma má coisa ter olhos azuis. Embora isso soasse como pôr pérolas num vaso sanitário. Mas o misterioso olho direito azul estava lá. Aquele olhar infinito, com uma beleza feminina. Uma beleza feminina? Duas palavras com quase nenhum sentido para ele. 

-Eu quero sair. 
Estava louco, pensou. Não eram os remédios, era a ausência de efeito dos remédios. Pensou ter um ouvido uma voz feminina dizer "eu quero sair". 
-Não é nada, só efeito dos remédios, só isso- disse em voz alta- já vai passar, já vai passar.
-Me deixa sair! -Ouviu novamente. Era uma voz  jovem e algo agradável. Nada do seu tom rouco, da sua voz sempre dita para dentro. Resolveu fazer o jogo da sua cabeça. 
-Quem quer sair de onde?
-Eu quero sair. Sair daqui. Eu quero ir tomar um sol, sentir o vento, tomar um sorvete, sair com amigas, namorar. 
-Ora, saia então. Que tenho eu com isso dona alucinação?

Pensou ter ouvido um som. O vizinho? Mas havia um som, um som bonito, violino. Era uma música, Primavera, Vivaldi. Certo, agora sabia que era alucinação. 

-Ei, vai me deixar sair ou não?- Insistiu a voz, agora num tom mais elevado. -Eu quero sair daqui porra! -Gritou.
-Sair de onde? Quem quer sair? Pode sair , que tenho eu com isso sua maluca? 
-Maluca, eu? Olha quem fala, o cara com mais de trinta anos que mora com a mãe, que nunca teve uma namorada e que coleciona embalagens de antidepressivos. Me deixa sair, ou eu juro que vou aí e arrebento essa tua cara! 
-Sai fora ô nervosinha! Vou te ignorar, assim você desaparece. 
E começou a assoviar a nona de Beethoven. 
A mãe gritou algo da cozinha, ele respondeu com um grunhido. 
-Lá, lá, lá...
-Vai me deixar sair ou não? 
-Não falo com pensamentos gordofóbicos. Lá, Lá, lá...
-Espere. Nada a ver isso aí. Não é preconceito, é só que você faz da nossa vida uma coisa mais triste do que ela devia ser, e eu quero um pouco de sol, um pouco de alegria. Eu não tenho culpa se você prefere afundar nessa autocomiseração...
-Ah! Já entendi! É a voz da minha médica. A Doutora P. Tinha que ser, eu sabia que conhecia isso. 
-Doutora P.?

O olho azul ainda estava lá, fitando-o com irritação. Era um olho direito muito bonito, admitia. A imagem, notou, parecia meio desfocada. Não. O olho estava bem claro, mas o resto, ele mesmo, estava borrado. Firmou o olhar, mas o efeito prosseguia. Correu até o criado mudo e apanhou seus óculos. Voltou e firmou o olhar. O olho azul o encarava, mas todo o resto era um borrão. Voltou a jogar água na cara. Nada. Molhou os cabelos. Nada ainda. Mas espere! Parece que algo se forma ao lado do olho. Um outro olho azul. Agora os dois olhos eram azuis. Embaixo dos olhos foi aparecendo um nariz fino. E sob o nariz um lábio superior muito bem definido. A parte inferior do lábio começou a se formar. Ele teve que admitir que aquele era um bom par de lábios. Carnudos, bem delineados. Logo depois surgiu o queixo, daqueles bem suaves, com uma leve reentrância no meio. As bochechas já estavam formadas, o lábio carnudo sorria, e nelas, nas bochechas, havia duas marquinhas, dois furinhos emoldurando o sorriso. E o resto? Sobrancelha alinhada, bem fina, assomada por uma testa lisinha, e ornamentada por umas mechas de cabelos levemente ondulados, soltos dançando de um lado para o outro. O sorriso permanecia, mas agora havia um corpo de mulher nem magro nem gordo. Exceto pelo cabelo caindo sobre os ombros, não havia nada que lhe cobrisse o corpo. Os seios apontavam para frente, com seus bicos rosáceos quase saindo pelo espelho. O ventre descia regular até uma pequena floresta dourada. De onde estava, via os pelos clarinhos eriçados nas suas pernas e braços. Mas tudo era absorvido pelo sorriso, um sorriso cheio de dentes brancos. 

-Que foi? Perdeu a língua? Agora podemos conversar cara-a-cara. E como o tempo urge, quero logo que VOCÊ ME DEIXE SAIR!!!!

Isso, fique registrado, foi um grito que quase fez com que ele saltasse para debaixo da cama.  Colocou as duas mãos sobre a cabeça, um tanto para manifestar sua surpresa, outro tanto para ver se a imagem acompanhava. Não acompanhou. Era autônoma, como se o espelho fosse uma tela para um outro mundo. A imagem continuava lá, com as mãos na cintura nua e o sorriso confiante. L. sabia que precisava decidir se aceitava a alucinação ou a ignorava. 

-E aí, o que vai ser? Disse a imagem, inclinando levemente a cabeça num jeitinho que quase o conquistou. 
-Eu já disse, saia. Eu não tenho nada com isso. E aliás, nem sei como fazer para que uma alucinação...
-Epa! Que alucinação o que ô meu! Do meu ponto de vista você é que não é real. A coisa é simples, você me deixa sair, e vai curtir a sua amargura existencial num cantinho escuro da nossa mente. 

Aquilo o irritou. Ela decididamente esperava que ele saísse de cena. Então era óbvio que se tratava de uma apropriação de corpo e...ela disse "nossa mente"? 

-Olha moça pelada cujo nome não sei, eu tenho que sair para trabalhar, tive uma noite pesada e tenho aí umas nove horas de trabalho pela frente. Então se a senhora não se importa, eu gostaria que voltasse lá para o País das Maravilhas, ou a Terra de Oz e me deixasse em paz, EM PAZ! Está ouvindo, sua alucinação do ca...
-Nossa! Você beija sua mãe com essa boquinha? Certo, vamos começar de novo. Eu quero sair. Acho que você está fazendo uma péssima utilização da nossa vida, e eu não quero passar meus dias assim nessa penumbra, sem amigos e sem coisas interessantes para fazer. Vamos lá meu chapa, me deixe sair. 
-Por que você fala, alucinação, da  minha vida como se fosse nossa vida? Era só o que me faltava, além de depressão, agora tenho esquizofrenia...
-O que você tem é esquisitofilia! Você não é doente cara, só quer estar doente. Não tem nada com a sua mente, ou melhor, não tem doença. A única coisa nela sou eu, uma personalidade que não curte essa sua parada aí e que tem o direito de viver de outro jeito. 
-Então saia, pegue sua bunda branca- disse ele irritado- e vaza da minha cabeça, do meu espelho e da minha vida. Só não espere que eu faça algo, porque eu não tenho a menor ideia do que você está falando, nem pedindo. 
-Ora, não se faça de desentendido. Eu quero sair, e para sair eu preciso que você me deixe sair. Na verdade eu sei como fazer, mas se você concordar fica mais fácil e mais rápido. 
-É? E como eu faço isso, onde está a porta que eu devo abrir?
-Na verdade é muito simples. 
- Você fica repetindo isso, "na verdade", "na verdade"...alucinação, e não me diz como.
-Meu nome é K. 
-Então K., como eu me livro de você? 
-É só desistir da sua vida. 
-Como???
- Oras, é só d-e-s-i-s-t-i-r dessa bosta de vida que você tem. 
-Então você quer que eu me suicide?
-Suicídio? Claro que não, seu besta! Aí eu morreria também. O que eu quero é que você desista de estar aí fora, de decidir e comandar o que fazemos com nossa vida. Eu quero que você me dê o controle de tudo. 
-Para mim isso parece suicídio. 
-Mas não é. Você continua do jeitinho que gosta, e eu vou curtir a vida. 
-Olha K., eu não devia dar atenção para um negócio que deve ser uma mera alucinação da minha cabeça, mas vou seu direto e sincero: Vá à merda! 
Bateu no espelho com a mão enrolada na toalha de rosto. 
E saiu do banheiro batendo a porta. 
No chão os pedaços do espelho. O olho em um pedaço. Em outro, os lábios. E o sorriso em todos. 

                                                                   ***
Parte 2

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